quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

O vôo

É dessas histórias que a gente sempre lembra com saudade e se arrepende por não ter havido nem anúncio, nem despedida.

Minha avó costumava pegar meu irmão na escola, quando ele era piá, e caminhar uns bons metros até sua casa. O sinal da saída batia 16h30, eu lembro. Quando eu estava junto, costumavam parar na padaria, no mercado ou em qualquer outro comércio pequeno que havia ali por perto. Em todo lugar a minha avó era conhecida e tratava os funcionários com intimidade, chamando pelo nome e fazendo piadas. Mas hoje, quase todas as pequenas lojas deram lugar a prédios, igrejas ou super-mercados.
Não esqueço da nona contando como sugeriu ao dono do bar em frente ao Estádio Caio Martins que ele pintasse o símbolo do Botafogo na parede. Minha avó era botafoguense, ele era cruz-maltino. Mas a estrela solitária vingou e está lá até hoje. Acho que ele não sabe que minha avó morreu. Ninguém sabe. Ela apenas desapareceu do dia-a-dia deles, como outros tantos desaparecem. Em seus últimos meses a memória já falhava. Esquecera as compras do mês na padaria, mas jurava que havia as deixado no mercado. Brigou com deus e o mundo, xingou a caixa e falou que não voltava mais lá.
Mas a história do vôo é um pouco mais antiga... Como eu disse, meu irmão ainda era um gurizinho, que nem podia andar sozinho na rua. Continuando, no caminho de volta pra casa minha avó e meu irmão encontraram um passarinho ferido no chão. Meu irmão queria cuidar do indefeso animalzinho de qualquer jeito. Conclusão, eles levaram o pássaro para casa e tentaram consertar sua asinha quebrada. Embora o bichinho estivisse fraquinho, como qualquer criança, meu irmão acreditava na recuperação e foi dormir feliz, com a sensação de missão cumprida. Quando acordou, a primeira coisa que fez foi perguntar pelo pássaro. Estranhou ele não estar no lugar em que o deixaram. Na mesma hora minha nona disse:
- A asa do passarinho ficou boa e ele saiu voando pela janela ainda há pouco!
Meu irmão ficou bem contente com a notícia, afinal o passarinho poderia voltar pra natureza e pra sua família. Seria um final lindo, se fosse verdadeiro.
O que viríamos a suspeitar ou descobrir só alguns anos mais tarde foi que subestimamos a esperteza da minha avó e a gravidade dos machucados do pássaro. Naquela noite ele nunca melhorou. Mas não adiantaria dizer isso ao meu irmão. Ainda era muito cedo para lidar com a morte e perdas, por menores que fossem. O encanto e a inocência tinham que ser mantidos.

Aquele passarinho só voou graças a imaginação da minha avó. E eu a agradeço por isso.